
“A Guerra Não Tem Rosto de Mulher” faz uma reparação histórica
A obra de Svetlana Aleksiévitch revolucionou as histórias de guerra, dando voz a mulheres e caminhando no sentido oposto dos padrões narrativos tradicionais
Por Antonio Sellare, Guilherme Spagliare, Henrique Bernardi e Pedro Cheque.
Svetlana Aleksiévitch nasceu na Ucrânia, cresceu e viveu na Bielorrússia e sempre teve, durante toda sua vida, um assunto que a rondava: a guerra. Histórias de conflitos, dor e destruição eram comuns para quem viveu em meio a uma realidade tomada por tanto sofrimento. Mas ela confessa que nunca gostou de livros sobre o assunto. Parecia ser impossível existir uma perspectiva que se distanciasse do retrato tradicional e tão explorado por outros. Mas ela fez exatamente isso.
Foi em meio a vozes silenciadas que a autora viu a possibilidade de revolucionar a maneira de narrar a guerra e eternizou em seu livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher os testemunhos de quem esteve pessoalmente no front. Ouvir mulheres de sua convivência contarem sobre o passado era uma forma radical de contar uma história para a Segunda Guerra.
A Guerra Não Tem Rosto de Mulher aborda um tema que sempre foi, majoritariamente, dominado por retratos masculinos, na maioria das vezes que traduzir episódios assombrosos de uma maneira heroica, valente, honrosa e com orgulho. Mas para Svetlana “em geral, o que nos parece mais interessante e próximo não são os grandes feitos e o heroísmo, mas aquilo que é pequeno e humano”.
Foi dessa perspectiva que a autora soube que sua narrativa seria diferente. A guerra era muito além do que conhecíamos, bem mais íntima e sem se adequar a um formato narrativo convencional. O uso da escrita polifônica, caracterizada pelo uso de diversas vozes para a formação de um texto, foi a base para a construção de um livro único. Ele foi construído quase que inteiramente por declarações femininas, provando que há várias guerras em uma só. “Me interessa não apenas a realidade que nos circunda, mas também aquela que está dentro de nós. Não me interessa o próprio acontecimento, mas o acontecimento dos sentimentos. Digamos assim: a alma do acontecimento. Para mim, os sentimentos são a realidade. E a história? Ela está na rua. Na multidão”, escreveu Svetlana.
Uma das raras escritoras de não-ficção laureadas com o Prêmio Nobel de Literatura, conquistado em 2015, Svetlana Aleksiévitch é autora também de outra obra-prima, Vozes de Tchernóbil, um livro que ela levou dez anos para escrever. “Por seus escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”, descreveu o comitê da premiação.
Mesmo entre suas singularidades, cada relato de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher não deixa de se assemelhar quando se trata de aspectos humanos, principalmente quanto se fala da morte. O conformismo com a finitude permeia a maioria das personagens. Os relatos são compostos por histórias de mães que perderam os próprios filhos, de jovens garotas que viram as pessoas que mais amavam partirem bem diante dos próprios olhos, de tentativas frustradas de salvarem outras vidas. A cada momento angustiante e extremamente impactante, visões sobre a guerra emergem: “Fiz um juramento, um juramento de guerra: se fosse preciso, daria minha vida, mas não queria morrer. Mesmo que voltasse viva de lá, a alma iria sentir dor. Agora, acho que seria melhor ter sido ferida na perna e nos braços, que doesse o corpo. Porque a alma… Dói muito”, diz uma delas.
A literatura inovadora de Svetlana Aleksiévitch enfoca a perspectiva singular e feminina das mulheres que vivenciaram o conflito. Mas além de quebrar com o padrão convencional de narrar a partir da perspectiva masculina, a autora prioriza a experiência individual. As narrativas usuais cedem espaço para as histórias pessoais das combatentes, muitas vezes negligenciadas pela memória coletiva. Embora os testemunhos não constituam completamente a narrativa histórica, eles são fundamentais como relatos de sobreviventes.
Aleksiévitch desempenha um papel fundamental como entrevistadora, inovando, inclusive, a prática do jornalismo literário. Sua obra proporciona uma plataforma para que as histórias sejam ouvidas, compreendidas e transmitidas para as próximas gerações. Apesar das adversidades e do sofrimento, as mulheres tiveram um papel crucial e inspirador no grande combate, embora o trauma persista como uma cicatriz na memória, suscetível à cura por meio da disposição das pessoas em ouvi-las, como fez a escritora.
A Guerra Não Tem Rosto de Mulher. De Svetlana Aleksiévitch. Companhia das Letras, 2016, 396 págs., 38 reais.